Foi grande o “sururu” à volta das perdas que os grandes grupos financeiros tiveram com a retransmissão para o BES da responsabilidade de reembolso das obrigações seniores, operada por uma das deliberações do Banco de Portugal (BdP) de 2015.12.29. E grande tem sido agora o “sururu” à volta dos raspanetes públicos que o primeiro-ministro dá, em público e em directo, ao Governador do Banco de Portugal a propósito da solução para o chamados “lesados do papel comercial”.
Do que ninguém fala, sabe-se lá porquê, é do acto vergonhoso de alijamento pelo BdP de toda e qualquer responsabilidade contingente anterior à data da resolução e de retransmissão para o BES da responsabilidade que porventura tivesse sido transmitida para o Novo Banco.
É que a retransmissão das obrigações seniores põe em causa a credibilidade internacional do sistema bancário e financeiro - e, por isso, dificilmente alguém quererá cá investir um cêntimo que seja; mas o alijamento de qualquer contingência do BES e a retransmissão das que porventura tiverem passado para o Novo Banco é um acto de esbulho arbitrário, próprio do terceiro mundo, que põe em causa a confiança mínima que os portugueses podem ter nos bancos onde depositam o seu dinheiro e no Banco de Portugal que os devia defender.
Na verdade, nos termos da primeira das deliberações de 2015.12.29, o BdP
(i) Clarifica que (…) não foram transferidos do BES para o Novo Banco quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BES que, às 20.00 horas do dia 3 de agosto de 2014, fossem contingentes ou desconhecidos (incluindo responsabilidades litigiosas relativas ao contencioso pendente e responsabilidades ou contingências decorrentes de fraudem ou da violação de disposições ou determinações regulatórias, penais ou contraordenacionais), independentemente da sua natureza (fiscal, laboral, civil ou outra) e de se encontrarem ou não registadas na contabilidade do BES;
(ii) Se foram efectivamente transferidos para o Novo Banco quaisquer passivos do BES que, nos termos de qualquer daquelas alíneas e da Deliberação de 3 de agosto, devessem ter permanecido na sua esfera jurídica, serão os referidos passivos retransmitidos do Novo Banco para o BES, com efeitos às 20 horas do dia 3 de Agosto de 2014
(iii) (…) clarifica não terem sido transferidos do BES para o Novo Banco, entre outos passivos, qualquer responsabilidade que seja objecto de qualquer dos processos descritos no Anexo I, entre os quais se encontram os presentes autos;
E tudo isto “devidamente fundamentado” no perigo que seria para os fins pretendidos para a resolução se os tribunais começassem a ter decisões diferentes entre si e não reconhecer adequadamente a selecção de passivos e de activos que o BdP tinha feito. E não chegava ao BdP ter ordenado a retransmissão do que ele próprio afirma não ter transmitido, para acabar numa pérola de despotismo iluminado, identificando as acções que ele BdP considera que devem prosseguir apenas contra o BES, qual juiz acima dos próprios tribunais!
Pois saiba o Banco de Portugal que nem Portugal é a República das Bananas, nem ele é o DDT.
É que só são objecto de retransmissão os passivos que tenham sido transmitidos pelo BES ao Novo Banco por efeito da deliberação 2014.08.03, existentes em data anterior àquela; donde se retira, em primeiro lugar, que não por ela afectados quaisquer passivos criados ou assumidos pelo próprio Novo Banco nem factos ocorridos em data posterior àquela.
Ora, relativamente à responsabilidade do Novo Banco, é fundamento da mesma, entre outros, a assunção pelo próprio Novo Banco da obrigação do pagamento dos montantes investidos em papel comercial e, caso assim não se entenda, da garantia do seu pagamento, já após a aplicação da medida de resolução, para além e fora do âmbito desta.
Por outro lado, a própria responsabilidade assumida pelo BES de reembolso do papel comercial ESI e Rio Forte transferiu-se para o Novo Banco, S.A., nos termos da própria deliberação adoptada pelo BdP e do perímetro de transferência por este definido em 2014.08.04, pois que o BES registou nas suas contas uma provisão precisamente para fazer face ao reembolso da dívida GES subscrita por clientes, no valor de € 588,6 milhões, dos quais 446 milhões visavam fazer face ao reembolso da dívida emitida pela ESI e Rio Forte. E se constituiu uma provisão foi porque reconheceu a sua responsabilidade; e se essa provisão constava do Balanço Previsional do Novo Banco à data da Deliberação de 2014.08.03, é porque a responsabilidade para a qual foi constituída também foi transmitida ao Novo Banco. A este respeito, saliente-se, aliás, que as necessidades de capital do Novo Banco, no valor de € 4.079.000,00, tiveram em consideração aquela provisão e a inerente responsabilidade, pois que aquela provisão corresponde a uma rúbrica do balanço que concorreu para aferir daquele valor.
Acresce ainda que, se o BdP “clarifica” que não foram transferidos para o Novo Banco “quaisquer passivos ou elementos extrapatrimoniais do BES que (…) fossem contingentes ou desconhecidos”, convém ter presente que o passivo referente à obrigação de reembolso do papel comercial ESI e Rio Forte não era - e não é - contingente, nem era desconhecido. E disso é prova bastante precisamente a constituição da provisão nas contas do BES a 2014.06.30 e que mantiveram no Balanço Previsional do Novo Banco, S.A., anexo à deliberação de 2014.08.03, assumindo, assim, a existência da obrigação de reembolso.
E não se diga que assim não é só porque as diversas acções intentadas contra o Novo Banco, incluindo as relativas ao papel comercial, foram expressamente indicadas na deliberação de 2015.12.29 como sendo retransmitidas ao BES. É que o Banco de Portugal tem um poder de seleccionar activos e passivos a transmitir; não tem o poder de determinar as acções de que quer que o Novo Banco seja parte e muito menos a decisão a tomar nessas acções sobre a responsabilidade dos que aí sejam réus, não podendo ser ele próprio o Juiz que determina o objecto de cada acção, se nesta ou naquela acção estão ou não em causa passivos excluídos ou se esta ou aquela acção deve ou não proceder contra este ou aquele réu.
Isso sim ofende claramente a separação de poderes; e sSe o Juiz não é administrador, também o administrador não é juiz, pelo que a deliberação do Banco de Portugal, na parte que determina de quem são as responsabilidades emergentes das acções nela identificadas, é nula por violação do princípio da separação de poderes, pois que os tribunais são independentes e as decisões judiciais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre quaisquer outras.
Haja um Rei que nos governe! E um Tribunal que o controle!
André Navarro de Noronha
voltar a Tellex