Na relação entre o jornalismo e a justiça não é fácil perceber onde fica a verdade.
Na nossa tradição cultural a Verdade possui uma grandeza moral. Quando alguém é apanhado numa mentira cai no ridículo. Ou na vergonha e no descrédito. No passado a verdade era indissociável de um certo estoicismo. Possuía uma força mítica, na aceção em que os semiologistas consideram que o mito é uma significação que se basta a si própria.
A transferência da política para os media e para o novo espaço público das redes sociais muito tem contribuído para esvanecer o conceito de verdade, enquanto referência estabilizadora.
A substituição da democracia por aquilo a que vários autores já designam por mediocracia, cria uma espécie de efeito de disseminação da verdade o qual, de certo modo, subverte a sua lógica. O que conduz ao seu declínio. Nuns casos ela seria o privilégio da casta de comentadores, noutros o falso monopólio de tribos de detratores e sabotadores sociais. Passam então a existir verdades.
Os descontentes hoje em elevado número por todo o lado, têm uma relação difícil com aquilo que é verdadeiro. Uma espécie de relutância perante os acontecimentos. A partir daqui constroem-se factos alternativos numa tentativa de refutar uma realidade demonstrada.
O jornalismo de investigação representa uma prática jornalística que se desafia a si própria, e recupera a noção de objetividade, uma arte e uma técnica entendida pelos profissionais como um ritual estratégico que revela marcas de verdade. Na sua fase atual este género de jornalismo implica um esforço redobrado que contribui para superar a crise e criar relevância.
Já quanto à confrontação nos tribunais, a atenção centra-se na conceção semântica da verdade. Pois não há verdade sem enunciado (como defendia Aristóteles). Isto é não há verdade sem discurso nem juízo. Neste enquadramento, distinguir o verosímil do verdadeiro nem sempre está ao alcance do senso comum. A este propósito é interessante notar que Platão advertiu no Fedro para o facto de muitas vezes nem sequer ser conveniente “revelar o que realmente aconteceu, se isso não for verosímil, apenas se devendo revelar o que parece ser verdadeiro”. Ficaríamos nesse caso sem conhecer a verdade, o que é particularmente grave quando se trata de interesse público (sublinhando na circunstância o interesse público dos crimes em geral). A sobreposição da verosimilhança à verdade, o parece que é, continua hoje a confundir opiniões e multidões. O que vem, desde logo conferir especial importância à capacidade de investigar, com exatidão e isenção. Tanto no jornalismo, como na justiça.
Real e ficcional são agora instâncias que se interpenetram. O que se explica entre outros aspetos pelos modos de viver e comunicar massificados, que facultam às pessoas a possibilidade de evitar aquilo de que não gostam. Podem, por exemplo, ignorar notícias sobre acontecimentos essenciais que não lhes interessem. Os enredos dos romances ao longo da história da literatura mostram perfeitamente que a par do interesse pela verdade, existe também o interesse pela mentira. Este por vezes é até superior, pelo seu efeito de transgressão e pela sua carga dramática. Nas sociedades contemporâneas hipermediatizadas o fator romanesco extravasou o campo da ficção, desde logo com a proliferação de personagens de diferente qualidade e espessura. São elas que dão vida à desmultiplicação de narrativas em que nos encontramos mergulhados.
Narrativas onde aquilo que simplesmente se passa, a superficialidade, é tido por garantidamente verdadeiro, sem que seja submetido à confirmação independente. Quase tudo é transitório, passageiro, descartável. Os populismos alimentam-se disso. Criam ressentimento, e tendem a ignorar as verdades de facto. Se dividíssemos as verdades em categorias, estas últimas encontram-se num grupo que não precisa do consentimento de ninguém. Mas já seria perigoso confundi-las com opiniões, uma vez que acabariam desqualificadas ao perderem o seu estatuto referencial. Quanto à pós verdade trata-se de uma substituição da realidade, o que a torna especialmente frágil (Myriam Revault D´Allones). Na política, sobretudo na partidária, é tentadora a promessa de dizer a verdade, quando seria mais honesto dizer com verdade.
O papel da Filosofia hoje, (fiel à compreensão elaborada pelos gregos clássicos), é neste problema em concreto, o de nos permitir distinguir entre dois sentidos de verdade. Um, a verdade enquanto ilusão, aparência, o verosímil fruto da imaginação. O outro, um dizer certo e acertado com o real do qual é consequência.
Temos assim, na nossa tradição cultural, a noção metafísica de verdade, ligada à transcendência, bem como a semântica da verdade, defendida pela lógica contemporânea. Uma e outra implicam a necessidade de arguir, para distinguir entre aquilo que é a verdade e aquilo que é verdade. Esta é afinal uma exigência da mecânica do pensamento, que nos caminhos da inferência e do raciocínio nos conduz às certezas provisórias com que temos que viver.
O que nos podem dizer sobre a Verdade, Manuel Magalhães e Silva, advogado, especialista em direito penal e Pedro Coelho, jornalista de investigação. É o que vamos procurar descobrir na próxima Conversa Desassombrada organizada pela TELLES, com curadoria de Eduardo Paz Barroso, professor universitário, autor e programador cultural.
A esta conversa juntar-se-á Pedro Matias Pereira, advogado na TELLES, que irá falar sobre a importância e o impacto deste tema na sua profissão.
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